Maria Sequeira Mendes, "Pânico satânico -- Notas sobre As Bruxas de Salém"

siiky

2023/11/01

2023/11/01

2024/07/25

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Pânico satânico -- Notas sobre As Bruxas de Salém

Maria Sequeira Mendes

Quando Michelle Smith e o seu futuro marido, o psiquiatra Lawrence Pazder, descobriram que Michelle havia sido sexualmente abusada em rituais satânicos quando era criança não poderiam imaginar que o seu relato viria a influenciar mais de 12 mil casos de pânico satânico nos EUA (e outros tantos no mundo). Michelle Remembers foi publicado em 1980. Escrito em forma de autobiografia, o livro relata o processo de tratamento de Michelle por Pazder ao longo dos anos, incluindo as sessões de hipnoterapia nas quais esta teria recuperado a sua memória. Segundo Pazder, os rituais foram realizados pela Igreja de Satã, uma organização mundial que precedeu a Igreja Católica. Apesar de muitos dos factos no livro, senão todos, serem controversos (entretanto, provou-se que não eram de todo verdadeiros e que as memórias de Michelle eram falsas), a obra foi um sucesso e deu origem ao chamado pânico satânico ou pânico moral. Este afectou as mais variadas pessoas durante a década de 1980 e início dos anos 1990, desde advogados, psicólogos e assistentes sociais que lidavam com suspeitas de abuso sexual infantil a pais ansiosos, e foi particularmente importante na cobertura em tribunal do caso McMartin, no qual se acusaram os professores de uma escola de abuso relacionado com práticas satânicas. Apesar de não ter havido condenações no julgamento, este foi muitíssimo penoso tanto para as supostas vítimas como para os acusados, espalhando o pânico moral pelos EUA, bem como o medo de que uma rede de pedófilos satânicos dominasse os infantários da classe média americana. Tais receios deram origem a outras suspeitas e, até, a condenações em tribunal em diferentes partes do país. Pacientes como Michelle insistiam em que tinham recuperado por fim as memórias de infância, lembrando-se de pormenores dignos de um filme de terror de série Z, como as vestes vermelhas ou pretas dos abusadores, os rituais de canibalismo, a bestialidade e o incesto.

A disseminação do chamado pânico satânico lembra a peça de Arthur Miller As Bruxas de Salém, estreada em 1953, que tem por base os julgamentos de bruxas por puritanos em 1692-93, bem como as audições do senador americano Joseph McCarthy na década de 1950, nas quais o dramaturgo e alguns dos seus amigos foram chamados a testemunhar (a propósito das suas relações não com bruxaria, mas com o Partido Comunista, o que na altura não era considerado muito diferente). O crítico Christopher Bigsby situa a peça entre dois acontecimentos que foram fundamentais para Miller: a sua vivência da Grande Depressão americana (a crise económica que levou centenas de pessoas ao suicídio) e o Holocausto: “O primeiro alterou um modelo particular de organização social, um mito nacional, uma interpretação da História; o outro destruiu a ideia de indivíduo e o conceito de que a sociedade é uma rede de obrigações mútuas.”[1] Apesar de não ter sido um sucesso aquando da sua estreia, com uma carreira de apenas 197 representações, ao contrário de Morte de um Caixeiro Viajante, que esteve em cena 742 noites, As Bruxas de Salém acabou por se tornar numa das peças mais emblemáticas de Miller e uma das mais representadas. O texto tem sido apresentado nas mais diversas ocasiões e é considerado uma pedra-de-toque das ilustrações de histeria colectiva ou do pânico moral.

Na sua peça, Miller escolhe descrever a história de uma escrava de Barbados, Tituba, e de Abigail, uma órfã, bem como de outras raparigas que foram vistas pelo Reverendo Parris a dançar na floresta, no que parecia ser um ritual pagão. A filha de Parris, que também participara no ritual, cai doente e parece não conseguir acordar. Temendo ser acusadas de bruxaria, como sucedera com outras mulheres em vilas vizinhas, as raparigas decidem antecipar-se e incriminar as mulheres da vila de feitiçaria. John Hale, um especialista em bruxaria, é chamado para averiguar a situação, o que dá início a um longo processo em tribunal, no qual se condenam muitos e se salvam poucos. Um dos aspectos interessantes na peça de Miller, como aliás tende a acontecer nas mais variadas acusações de bruxaria ao longo dos tempos, é o de como, a partir do momento em que a acusação é enunciada, não parece haver muito a fazer. Ou seja, é mais fácil provar a culpabilidade de uma pessoa quando (ou talvez sobretudo) ela é inocente.

As acusações de bruxaria tendem a partir do princípio de que, sendo as bruxas mestres do disfarce, é natural que sejam precisas testemunhas, bem como outro tipo de provas, com recurso à tortura, para provar a culpabilidade (nestes processos, raramente se trata de demonstrar que alguém é inocente). Infelizmente para as mulheres de Salém, John Hale não era um perito como, dizem os livros, Joseph Gassner, o famoso exorcista alemão que desenvolveu a capacidade de curar o corpo e o espírito, e que atraía multidões por volta de 1790. Entre outras práticas, Gassner fazia testes de exorcismo aos possuídos, usando por vezes o latim, uma língua que o Diabo, um grande linguista, conheceria, ao contrário daqueles que decidia possuir. Há quem considere que a técnica usada por Gassner era parecida com a hipnose, a ponto de alguns considerarem o exorcista o precursor desta técnica. Na peça de Miller, Hale depende, todavia, do testemunho de seres humanos que não raras vezes é determinado por outras preocupações, por vezes fortes, como a da autopreservação.

Este instinto de protecção, que leva a que, como sucede em As Bruxas de Salém, se multipliquem as acusações contra os habitantes da vila, lembra-me a descrição de António José Saraiva, em Inquisição e Cristãos-Novos, de uma narrativa na qual uma minha homónima, chamada Maria Mendes, e nascida em Elvas, como o meu avô paterno, foi submetida ao tribunal da Inquisição:

Maria Mendes, moradora em Elvas, viúva de um sapateiro, foi presa e “confessou” logo. “Deu em todos quantos filhos tinha, netos e parentes, e em todos quantos conhecia e lhes sabia os nomes, que se entendeu dela que havia dado em mais de seiscentas pessoas. Ainda assim foi relaxada como diminuta. E depois da sentença revogou tudo, declarando serem tudo falsidades que havia posto sobre si e sobre os seus próximos, para remir a vida. Estando esta mulher no auto[-de-fé] já para morrer, uma filha sua, que saiu no mesmo auto, em altas vozes lhe quis lembrar alguns parentes, para que ali no auto fosse dar neles e não morresse […]. Respondeu-lhe a mãe: – Filha, nada disso está por fazer. Não me ficou Castela nem Portugal. Tudo corri e nada me valeu.”[2]

Talvez este seja o motivo pelo qual tanto me interessa este tema, que pode ser uma forma de expiação por noutra vida eu ter sido menos valente do que deveria. Na descrição da Maria Mendes imortalizada pela sua covardia descobrem-se duas verdades importantes sobre este tipo de procedimentos: a de que a partir do momento em que a acusação tem lugar é difícil provar-se a inocência de alguém, e a de que são poucos os que, vendo a sua vida em perigo, não se decidem a difamar a família e os vizinhos. Afinal, se a própria Maria foi injustamente acusada, como existiriam certezas da inocência daqueles que a rodeavam? Este aspecto sempre me pareceu fundamental neste tipo de processos, quer se trate da Inquisição, das bruxas de Salém, das acusações do senador McCarthy, do uso do polígrafo na contratação de trabalhadores nos supermercados americanos ou na tortura de suspeitos de terrorismo. Agregar estes processos tão diferentes não implica retirar-lhes a especificidade que merecem, apenas apontar para o facto de que existem coisas difíceis de provar, e que o ser humano tem tendência para lidar mal com a incerteza, pelo que uma explicação causal, por mais bizarra que possa parecer, é sempre mais persuasiva do que a realidade. A peça de Miller tem interesse, contudo, porque sublinha um aspecto ligeiramente diferente de outras descrições do mesmo tipo, no sentido em que as pessoas da vila parecem suspeitar que as acusações são falsas, mas que a partir do momento em que são enunciadas é difícil parar um motor em funcionamento.

Creio que este aspecto é bem representado em As Bruxas de Salém, com uma particularidade que tem passado despercebida aos críticos. Na verdade, uma das características que mais aprecio no texto é a de nele existirem frases curtas e boas para nos lembrarmos delas noutras ocasiões. Disso são exemplo: “Está uma manhã valente, para se voar para o Inferno”; “Eu só saio para ver os grandes afazeres deste mundo”; “Não podemos chamar a superstição a isto. O Diabo é rigoroso”, entre tantas outras. Estas frases são suficientemente memoráveis para serem rapidamente decoradas e passarem de boca em boca, tal como o são as acusações das raparigas e a sentença do tribunal.

Voltando um pouco atrás, ao contrário da minha homónima, Proctor, o herói da peça de Arthur Miller, prefere morrer a condenar outras pessoas, em parte porque se sente culpado de ter cometido adultério com Abigail, que agora acusa a sua mulher de bruxaria. Críticos como Christopher Bigsby consideram que a peça de Miller relata a história de Proctor, uma das personagens principais, à volta da qual a narrativa tem lugar. Bigsby tem, claro, razão, mas a sua perspectiva aponta para o que pode ser considerado um dos aspectos menos conseguidos da peça de Arthur Miller, o da sua caracterização competente das personagens masculinas por oposição à sua descrição menos capaz das figuras femininas. Elizabeth, mulher de Proctor, corresponde à imagem da mulher virtuosa, mas frígida, que contrasta com a figura de Abigail, a mulher sedutora de poucos valores. Miller usa de forma inteligente os estereótipos, levando a mulher santa a ser acusada de bruxaria e a figura diabólica a escapar, fugindo e sobrevivendo ao mar de acusações por si desencadeadas.

Talvez fosse interessante pensar, ao contrário do que defende Bigsby, que esta é antes a narrativa de Abigail, a órfã zangada que resolve destruir aqueles que a rejeitaram (como Proctor), desfazer puritanos como Parris e alinhar-se com aqueles que são rejeitados, como Tituba, a escrava que recusa a narrativa que as outras personagens têm do Diabo. Não é por acaso que Abigail, Tituba e as outras raparigas estão fora de cena durante a maior parte do tempo. Apesar de terem sido elas quem incita a acção, deixam os homens tomar conta do palco e dos procedimentos, observando com tranquilidade enquanto a vila é condenada ao castigo, prisão ou morte. Quando a situação se complica, Abigail foge.

Em inglês, a peça chama-se The Crucible; em português, o título nomeia o cadinho, um vaso em forma de cone, que é resistente ao fogo e pode ser usado para fundir ou calcinar minérios ou minerais. Na metalurgia, a palavra designa a parte interior do alto forno, na qual fica o metal fundido, que é assim separado da escória. Não é difícil compreender a relação entre a ideia de um recipiente que resiste, ou não, a altas temperaturas e a peça de Miller. “Crucible” nomeia igualmente um teste, ou uma provação, através do qual é possível compreender o carácter de alguém. Em As Bruxas de Salém, não existem boas pessoas: temos aqueles que são obviamente culpados, os que têm medo de o ser, e por isso culpam outros, e os inocentes de uma ou outra acusação, apenas culpados de outras coisas, como ser frios ou bígamos; por fim, aqueles a quem alguma culpa foi atribuída pelo mero facto de serem diferentes, como sucede com a escrava Tituba. Pese embora o facto de todos estarem comprometidos, todos sentem um incrível receio de ser condenados ou desviados pelas práticas das bruxas. Existe, até, a possibilidade de serem culpados graças às bruxas, que os levaram a fazer o que não queriam sem que disso se apercebessem. Na história de Miller salvam-se os que sabem usar a linguagem para se defenderem, e não aqueles que são virtuosos ou têm a pretensão de usar a virtude. Tempos recentes mostram-nos que a peça é mais actual do que nunca. Citando Miller: “Somos o que sempre fomos, mas estamos despidos agora.”

[1]: Christopher Bigsby, “Introduction”, The Cambridge Companion to Arthur Miller (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), p. 5.

[2]: António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-Novos (Lisboa: Inova, 1968), p. 115.