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2023/11/01
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2024/07/25
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Fernando Villas-Boas
Na noite de 15 de Junho de 1953, quando o grande Edward R. Murrow encarou a câmara do estúdio da CBS para fazer os comentários finais e mais pessoais no fecho do seu programa de investigação jornalística e actualidades, tinha decidido glosar a célebre advertência do fundador Benjamin Franklin sobre a má escolha da segurança em desfavor da liberdade -- com palavras suas, escolhidas e ditas com a máxima cautela:
Houve nações que perderam a sua liberdade julgando que estavam a defendê-la, e se, neste país, confundirmos desacordo com deslealdade, estaremos a negar o direito de cada um aos seus erros.
Aquelas palavras ressoaram, e são hoje vistas como tendo marcado o princípio do fim das inquirições da Comissão de Actividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos, guiadas com fervor e vozearia pelo senador republicano Joseph McCarthy e seus acólitos, no que foi uma das repercussões internas mais nefastas da Guerra Fria.
Houve outro acontecimento capaz de merecer ou partilhar o mérito cívico e até o impacto político do trabalho de Murrow: pouco menos de cinco meses antes, a 22 de Janeiro, tinha acontecido a estreia de The Crucible (As Bruxas de Salém) na Broadway, da autoria de um Arthur Miller que já era um escritor famoso, o autor de Morte de Um Caixeiro Viajante, sempre pronto a tomar posições públicas, de acordo com a sua crença capaz de espantar o próprio Brecht, mestre do teatro político, com o seu voluntarismo:
Não sou capaz de conceber um teatro que não queira mudar o mundo.
O país e o mundo ressoaram na sala dessa primeira carreira, é um facto. A montagem original da peça ainda estava em cena no dia em que Ethel e Julius Rosenberg foram executados, outro par de vítimas do clima dominante de suspeita, às mãos de outro tribunal duvidoso, e o próprio Miller lembrou com orgulho como, a seguir à cena final em que se ouvem os ecos do enforcamento do seu herói John Proctor, o público se ergueu em silêncio e permaneceu vários minutos de olhos no chão.
Murrow e Miller, com outros que arriscaram muito das suas vidas pessoais e profissionais, saíram vitoriosos sobre o tribunal de McCarthy. Mas as suas causas mais pessoais, a de um jornalismo de investigação financeiramente independente e prioritário na programação televisiva, no caso de Murrow, e de um teatro livre também dos mecanismos comerciais, capaz de estar no centro da discussão democrática, no caso de Miller, acabaram em derrota.
Miller não conseguiu sequer mudar a Broadway, quanto mais o mundo. O seu voluntarismo, aliás, no caso de The Crucible, trouxe à peça um fardo insuportável de explicação e contencioso. Sim, na América do tempo da escrita da peça não pareceu aberrante que o autor de um drama de inspiração histórica fosse chamado a defender a legitimidade da sua obra (e se prestasse a fazê-lo). Depois, três anos passados sobre a estreia, Miller foi à comissão especial do Congresso com o mesmo espírito diligente, para responder pelo seu passado de jovem frequentador de tertúlias marxistas. Já tinha escrito o rascunho da sua resposta, na voz emprestada do seu herói, e negou-se a denunciar outros:
Vou ser absolutamente franco com os senhores em tudo o que estiver relacionado com as minhas actividades. Assumo a responsabilidade por tudo o que fiz, mas não posso assumir qualquer responsabilidade por outro ser humano.
A resposta foi boa, mas houve uma resposta melhor. Bertolt Brecht, quando foi a sua vez, recorreu ao reportório da farsa e pôs-se no papel do idiota que só entende perguntas à letra e nem sabe falar estrangeiro (que sabia), usando o advogado como intérprete. Recusou-se a aceitar que a tradução de um poema seu fosse o poema que escreveu. “Não escrevi esse. Escrevi um completamente diferente, em alemão.” O riso na sala salvou-o de um inquérito mais rigoroso. Impecável na sua cena, Brecht demonstrou que os inquiridores não sabiam nada sobre ele. Miller nunca teve o mesmo humor e distanciamento, e reconheceu isso, ao falar não só dos horrores, mas também do absurdo e até do ridículo de muitas das cenas do tribunal de Salém (e, em espelho, do de Washington):
Fiquei feliz, é claro, por ter conseguido escrever The Crucible, mas, olhando para trás, desejei muitas vezes ter o temperamento para ter feito uma comédia absurda, que era o que a situação tantas vezes merecia.
Uma colaboração improvável com Brecht, e a peça resultante talvez se tivesse livrado de ser um espécime para munição de causas alheias, dissecação e exames escolares.
A invocação de Murrow leva-nos também ao episódio da resposta a que McCarthy viria a ter direito depois do tratamento jornalístico a que foi sujeito o seu tribunal, em directo, durante meia hora, no próprio programa de Murrow, na qual o senador optou pela contra-acusação, em que, a um passo, relembrou a “importância” do seu tribunal, e logo de seguida procedeu ao isolamento do visado como um caso não só digno de julgamento, mas especialmente merecedor, por ser ainda mais gravosa a sua “singularidade”. Denunciar o denunciante do tribunal -- eis uma das manobras levantadas dos antigos registos e postas em cena no tribunal de Salém da peça de Miller. Disse o senador McCarthy:
Normalmente, eu não teria roubado tempo ao importante trabalho em curso para responder a Murrow. No entanto, neste caso, sinto-me legitimado ao fazê-lo, porque Murrow é um símbolo, um líder, e o mais inteligente, do bando de chacais que vemos sempre pronto a atacar a garganta de qualquer um que ouse expor individualmente comunistas e traidores.
Nisto se vê o quanto a peça de Miller quis e foi capaz de conter a sua América contemporânea, uma tarefa de razoável vigor. Quem viu ou leu a peça reconhece de pronto este tipo de discurso, que uniu 1692 e 1953: o seu tom dominador e condescendente, e até o seu imaginário selvagem e canino. Aquele foi o mesmo vigor com que Miller haveria de declarar, muito perto da morte, estar disposto a escrever “uma grande peça americana”, lamentando que “ninguém ma quer pagar” (referindo-se à montagem do espectáculo, não ao rendimento pessoal, obviamente).
A discussão convencional da suposta fraqueza dos dois grandes paralelos que o drama convoca, entre 1692 e 1953 (e outros tempos que se lhe assemelhem), é hoje bastante estéril. Foi Molly Kazan quem formulou essas objecções, dramaturga e esposa do amigo Elia Kazan, encenador de Todos Eram Meus Filhos e Morte de Um Caixeiro Viajante, homem que cedeu e denunciou antigos companheiros diante da comissão do Congresso. Era uma ajuizadora parcial, interessada em atribuir mais realidade às maldades do seu presente, e, porventura, em dignificar a derrota do marido. Negou a eficácia da equivalência entre bruxas e comunistas, e entre um tribunal religioso e outro legislativo. Miller defendeu-se por escrito: as bruxas tinham sido muito mais reais em Salém do que alguma vez os comunistas o foram, enquanto motivos de terror, em solo americano. O medo das bruxas foi ainda mais real do que o formidável medo dos comunistas e das suas células ocultas, nos tempos do Red Scare, o “medo vermelho”. O medo, portanto, é a força em causa, não os seus motivos -- fantasmagóricos, uns e outros.
A comparação dos tribunais soa a ignorância voluntária, ao supor que os tribunais de Salém não funcionaram a par dos tribunais regulares da época, ainda mais com o acompanhamento de representantes da coroa e do governo estadual do Massachusetts, sendo que o direito religioso se subordinou ao direito criminal geral. A bruxaria era um crime civil. E parece igualmente insignificante supor-se que, por outro lado, a Comissão McCarthy não teve toda a natureza de um tribunal religioso em fase delirante, a exigir o que eram afinal verdadeiros actos de contrição, dispensada toda a prova além da denúncia, e invocada a nacionalidade como um credo. O ritual, o próprio Miller o apontou, foi muito semelhante. Mas tudo isto é fastidioso, e ofende a imaginação.
Miller, interessado na pequena catástrofe do julgamento de Salém, que causou a morte na forca a dezanove pessoas e dois cães, teve de entregar-se a construções delicadas como o diálogo de um casal desavindo, 261 anos perdido no tempo, algo que nunca ninguém poderia saber, quando essas duas pessoas são dois nomes nas actas de um tribunal rural, modestos donos de algumas séries de frases soltas, escritas num alfabeto fonético. Esses, como outros, têm de ser criados como vivos a partir de uma massa de apontamentos babelescos que mal ecoam as suas vozes. Vale o sítio onde viveram, umas poucas gravuras velhas, e o texto bíblico que sabiam de cor. Como foi possível discutir essa formação de vozes e corpos em termos de História verificável? Pergunto ao autor, e não aos perguntadores profissionais que o quiseram discutir.
Há uma mistura de sentimentos, uma humildade vaidosa, na defesa que Miller faz do seu trabalho, na nota de abertura ao texto publicado: “Uma nota sobre o rigor histórico desta peça”. As personagens ou são agentes da História (“não há ninguém neste drama que não tenha desempenhado um papel semelhante no passado distante -- e, nalguns casos, exactamente o mesmo”) ou são suas criaturas (“Quanto aos caracteres das pessoas, pouco se sabe sobre a maioria. Podem, portanto, ser tomados como criações minhas, concebidos em conformidade com o comportamento conhecido, na melhor medida das minhas capacidades…”). Esta ambivalência está por vezes escondida: Miller admite que alterou a idade da protagonista em relação ao modelo histórico (“a idade de Abigail foi aumentada”), transformando uma menina de onze anos numa jovem de dezassete (“de uma beleza evidente”). Mas nada diz do herói, John Proctor, que nas crónicas tem sessenta anos e na peça se torna um vigoroso reprodutor (“Proctor era um lavrador de trinta e poucos anos…”). Os mais ágeis lembram-se de uma chalaça do mestre Eric Bentley: “Uma pessoa nunca sabe sobre o que é uma peça de Miller: se é política, se é sexo.” Miller nunca escondeu que a possibilidade deste elo sensual entre duas personagens centrais o fez ver o motor do drama. Baseou isto no facto de a Abigail histórica nunca ter aproveitado qualquer oportunidade para denunciar Proctor, tendo acusado Elizabeth; e de Proctor ter demorado a reagir ao caos. Mas o Proctor histórico também tinha sido patrão de Mary Warren, que também dormiu sob o seu tecto, e tinha dezoito anos à data dos acontecimentos. E Mary Warren fez o mesmo: podendo, negou-se a apontar Proctor, num gesto nunca explicado, antes de render-se ao caos. Ou seja, Miller tinha argumentos para disputar “rigor histórico” na sua moldagem do enredo e das personagens centrais, mas preferiu guardar na intimidade a sua escolha mais instintiva: ligar o herói Proctor à voz central das pequenas acusadoras. E há na escolha algo do marceneiro que ele também era: Abigail dava-lhe o laço com Parris, por ser sua sobrinha, e o laço com a lenda: depois dos acontecimentos, Abigail deixou Salém para sempre. Diz a lenda que foi achada a fazer vida de prostituta em Boston (o que Miller aponta no seu epílogo em prosa, como os dos filmes); isto dá, desde logo, um valor de fatum a esse nome que Proctor lhe atira, na versão portuguesa (em vez do mais obsceno e mais deslocado puta, sendo que o whore do original, tão cru quanto de uso universal, tem ecos bíblicos).
Há na peça um veio biográfico comovente, que reflecte o fatigante trânsito de Miller entre o seu primeiro casamento, a fama, e o encontro com a segunda esposa, de nome artístico Marilyn Monroe. Esse não o quis ele discutir na altura. A cena adicional (que tem existido como Apêndice e poderá tornar-se a segunda de duas, no segundo acto), mostra um encontro nocturno, na floresta, entre Abigail e Proctor, antes da ida dele a tribunal. Ela está intransigente, furiosa de tristeza, e a loucura é mais evidente do que a beleza (e Miller di-lo, numa das suas muitas didascálias inúteis). Ele diz-lhe: “Esperava ver-te mais contente do que te vejo. Dizem-me que um bando de rapazes vai passo a passo contigo, por onde quer que vás, nos dias que correm.”
Estranho, sempre muito estranho, é o próprio impulso americano de questionar a legitimidade de uma ficção dramática que procure recuperar acontecimentos, ou buscar figuras ao quotidiano. Nisto, o teatro de Arthur Miller está sujeito ao mesmo crivo de qualquer ficção dramática, seja teatral, cinematográfica ou televisiva: uma desconfiança da ficção -- no que é, espantosamente, uma herança directa do passado puritano: diante do texto bíblico, tudo o resto são ficções que deverão fazer prova de alguma da sua pequena verdade. Ficções que deverão, ao menos, ser baseadas em factos verídicos. O próprio actor americano, o actor do método, interroga as suas memórias emotivas com o afã do crente que busca na sua consciência sinais de verdade, de conduta verdadeira para consigo próprio e, no caso, também para com a personagem. Mas todas as histórias são baseadas em factos verídicos.
Parece chocante, para um ponto de vista europeu, o questionamento de uma peça quanto aos seus direitos de visitação e reanimação da História. Sabemos bastante sobre o massacre de Milos, episódio da destruição, pelos nossos precursores atenienses, de uma cidade-estado neutral, que não quis depender nem de Atenas nem de Esparta, durante a Guerra do Peloponeso, que dividiu para sempre as duas cidades. Os atenienses invadiram, queimaram e arrasaram. Executaram os homens e escravizaram mulheres e crianças. Eurípides ofereceu então à consciência ateniense, muito pouco tempo passado, As Troianas, título tradicional português, ou, como seria mais justo e carnal chamar-lhe, As Mulheres de Tróia, tragédia localizada no passado mítico das narrativas homéricas, véu de beleza transparente aplicado às barbaridades recentes. Aquele que é um verdadeiro Apocalypse Now ateniense superou vastamente as fontes, e o seu patamar de fantasmagoria e análise da dor está fora do alcance do questionamento dos factos. A poesia é o que nunca aconteceu, mas está sempre a acontecer, diziam os antigos. Veja-se a dificuldade com que a América digeriu o filme de Coppola. Nunca ocorreu a alguém questionar Eurípides pelo seu tratamento dos factos. Quais factos. A tragédia dispensa absolutamente essa contabilidade. Poderíamos dizer, com algum excesso de zelo: tivesse The Crucible conseguido ser uma tragédia e o tema da adequação aos factos teria abortado. (É certo que o veio calvinista tem sido muito contrariado, tantas vezes de modo fulgurante. Bob Wilson nasceu em 1941 numa comunidade texana capaz de relembrar a antiga Salém. Mas também viria a dizer: “Os europeus pagaram Einstein on the Beach, não os americanos.”)
Os europeus nunca se afastaram dos mitos, e afastaram-se melhor do passado calvinista. Bebem das fontes antigas do mito, da narrativa épica ou do teatro, nunca abandonadas, e sabem, sempre souberam: a ficção carrega experiência; a poesia carrega experiência. Perdoe-se esta generalidade do tamanho do Mediterrâneo.
Um aspecto da construção muito menos discutido é o da linguagem. O trabalho aqui em causa confronta-se com outra peculiaridade do destino americano desta peça. Falo daquilo a que chamo a “mania do presente”, ou, no drama, o temor de todo o idioma que não seja a oralidade mais imediata. Miller é citado por ter dito “a arte do teatro é oral”, quando se lhe elogia a agilidade dos diálogos. Mas temo que aquele princípio, para uso próprio, como é comum na arte dramática americana, quer verdadeiramente dizer que a arte do teatro é a da fala presente. O próprio Miller escreveu com satisfação sobre ter criado um idioma próprio para esta peça, algures entre o do passado de Salém e o do seu tempo. Nisto, o argumento público americano para esse compromisso costuma ser o de evitar o “distanciamento” do público -- como se a linguagem não fosse uma parte vital da ficção. Mais, acredito a sós, do que qualquer manobra plástica.
No caso desta peça, o cume da angústia vem de os justos serem obrigados a tomar para sua defesa os mesmos termos e princípios que os incriminam. Não têm, dito doutra forma, palavras para dizer a sua verdade, para reclamarem a sua liberdade. Esse cerco acontece na linguagem, e o grito “Deus está morto” de Proctor é a expressão directa dessa claustrofobia, que tem de ser criada pela linguagem. Aí está, à margem do enredo bem escorado, a fragilidade da peça. Nunca estamos inteiramente trancados naquele lugar. Quando chega o momento dos diálogos mais íntimos, de Proctor com Elizabeth ou com Abigail, a fala é a contemporânea do autor.
Miller também cita exemplos característicos da linguagem que achou nas actas, num seu ensaio sobre a criação da peça (a “Palestra Massey”, na Universidade de Harvard). Mas nem esses exemplos, nem o seu idioma construído atingem algum grau elevado de eficácia ou alcance poético. Na peça não ressoa a Bíblia de Genebra, que aquela gente lia ou ouvia constantemente (tirando a menção literal de um só versículo, que foi modificado na versão de cena, por motivos de efeito local). Diz Miller, na “Palestra”:
Já que todos, ou uma parte de vós, são historiadores, enfatizei a História nestas observações, mas duvido que tivesse acabado por escrever a peça se a questão da linguagem não me tivesse atraído tão poderosamente.
Pouco resta desse poder extraordinário no tecido da peça. Aliás, Miller dedica à linguagem uma quantidade irrisória deste e de outros testemunhos sobre o seu próprio trabalho. Na peça, as deixas em que a retórica busca elevar-se e carregar consigo um pico emotivo, como se ainda acima da acção, são como árias de opereta, exorbitantes face à restante fala. Dir-se-ia, à portuguesa, que destoam, nesse isolamento.
Esta tradução procurou escorar o trabalho dos intérpretes, onde, digamos, poderia faltar algum contraste. As formas de tratamento, que, a exemplo da lição shakespeariana em que creio, são um mecanismo rigoroso de expressão de diferenças hierárquicas, foram distribuídas para criarem o mesmo efeito. O inglês, verdadeiramente, tem um carácter de língua tonal, e, na voz e no contexto, o you omnipresente pode ter muitos sentidos: íntimo, autoritário, suave ou agressivo, etc. O diálogo também leva a alguns mister, ou meu senhor, falsamente respeitosos ou desdenhosos. Assim, as nossas personagens tratam-se por vossa mercê entre vizinhos, por senhores ou senhoras quando os jogos de poder apertam, ou a distinção de classes, ou a cerimónia. O mais lesto vossemecê ajuda a exprimir, por exemplo, mais proximidade, ou menosprezo acidental. E por aí fora. Assim trazemos o lugar rural, os costumes antigos sem mudança, e a clara demarcação de papéis, entre homens e mulheres, homens entre si, e entre adultos e crianças (adolescentes incluídas). Assim, os tu entre Proctor e a mulher, ou as duas jovens mais próximas, criam uma diferença palpável.
Mais haveria a dizer sobre a forma como a discussão da validade historiográfica da peça evitou aspectos de ficção com maior carga política, como é o caso da personagem Tituba, a escrava que numa das cenas mais eficazes é arrastada a “confessar” e a apontar bruxaria noutras mulheres, com promessas de perdão impossível, e responde ao abuso com um transe de dor e quase canto. A Tituba histórica era de origem aruaque, uma etnia ameríndia, e não black American, e o próprio Miller parece ter-se esquecido completamente desse facto nas suas argumentações, e os seus juízes com ele. Miller fala da possibilidade real de ela se ter entregado à prática de vudu na cena original do escândalo, um culto que seria identificável e perturbante na sua Nova Iorque contemporânea, ao contrário de qualquer prática de magia aruaque, verdadeiramente exótica e politicamente vazia na cena americana.
Numa entrevista que concedeu a dois críticos de teatro da Broadway, aquando da digressão com a sua versão de The Crucible, o encenador Ivo van Hove foi confrontado com a questão da linguagem, no habitual tom esfuziante dos críticos daquela microcultura. “Como conseguiu ele…” -- foi a abordagem, que quase se adivinhava. Mas a absoluta descrença no poder ficcional da linguagem, podia dizer poético, não tardou a tornar-se ainda mais explícita, e cito: “Quero dizer, já ninguém fala daquela maneira!” (“I mean, nobody talks like that anymore!”).
Ivo van Hove passou por um microssegundo de horror. Percebeu, a tentar pensar rápido numa saída, que o crítico de teatro não estava a falar do melindroso trabalho que The Crucible pediria no trato com uma linguagem antiga, ou a meio caminho disso, marcadíssima pela religião e atavismos da vida comunitária puritana. Não. O especialista da cena nova-iorquina estava a falar de toda a obra de Miller.
Tristemente, talvez, o choque do encenador europeu foi com certeza maior do que o de Miller teria sido. Miller partilhou daquela descrença do animado crítico. Ao discutir muito de passagem o seu trabalho com a linguagem, Miller seguiu o tal caminho convencional do perigo do “distanciamento” do público (dir-se-ia, da falta de imaginação do público?). Decidiu abreviar o problema técnico e estético com uma anedota da Broadway, que leu à sua plateia de Harvard, a saber:
Desiludido com o fracasso de uma peça sobre a vida de Napoleão, o emblemático produtor Max Gordon desabafou: “Só espero esticar de vez antes de montar outra peça com um gajo que escreve com uma pena!” A história tem imensa graça. Mas Miller achou imensa graça a chamá-la ao contexto da discussão do seu drama, para o qual reivindicou o carácter “trágico”, dedicado às consequências de um certo tipo de terror numa certa comunidade rural de 1692. Estava enganado. A sua descrença talvez explique a razão por que o espectáculo que Ivo van Hove montou com The Crucible tenha resultado mais pobre do que a sua encenação de Do Alto da Ponte.