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Tiago Cavaco
Chesterton disse que a “essência da imagem é a moldura”, o que dá para aplicar ao teatro: o que se encena vê-se no palco e fora dele. O teatro é, por isso, aquilo que lá vemos e ouvimos mas também é o que, não se vendo e não se ouvindo, dele trouxermos. The Crucible de Arthur Miller enche os olhos e os ouvidos: a história antes da peça impressiona e em cena não fica atrás. Quando termina o último acto, espanta tanto a ficção como a realidade, a representação e o registo histórico.
Miller desejou esse impacto. Aliás, procurou-o. Miller quis que as palavras que escrevesse para serem ditas no palco pudessem representar não só a Nova Inglaterra do final do século XVII, mas a América do século XX -- a essência da imagem tinha de ir além da moldura. As bruxas perseguidas pelos religiosos eram os comunistas procurados pelos patriotas escaldados com a Guerra Fria. Na cabeça de Miller, o pânico era o mesmo, os chiliques idem, e a generalização da loucura aspas, aspas. A peça podia e devia ser levada à letra para interpretar o que não estava a ser fingido fora dela, pelo poder dos comités políticos.
Esse é indiscutivelmente um dos trunfos de The Crucible. “Que estupenda crítica social e que belo retrato dos excessos conservadores da América mais puritana!”, dizemos prontamente. No fundo, o que acontece fora da moldura torna mais pura a essência da imagem, quando se pode ter no palco o que fora dele infelizmente já existe. Mas este trunfo não está isento de problemas.
A peça-parábola anti-Joseph McCarthy garantiu-lhe, como a juventude agora gosta de dizer, um lugar no lado certo da História. Mas nos louros sobre a cabeça de Miller nasceram também pequenos espinhos. Em boa parte, este texto ficou arrecadado na prateleira das ferramentas que nos previnem de regimes opressores, como objecto de uso quase único, com pouca versatilidade. E impedir um verbo de versatilizar é sempre triste. É como se, depois do confronto formidável que The Crucible permitiu, tivesse agora de se conformar a viver para sempre na sombra daquele momento político específico -- ou de outros parecidos.
Alguns estragaram o ramalhete crítico. David Levin via em The Crucible um défice de profundidade artística. Detectava nela a recusa total de compreender o século XVII além da caricatura, sobretudo ao transformar as autoridades religiosas em marionetas e nunca em personagens completas. O próprio Miller não ajudou, diga-se, quando descontraidamente reconheceu que o povo que retratava acreditava em coisas que não existiam: as bruxas. “Uma vez que Miller faz da sua peça um ataque ao pensamento a preto-e-branco, é infeliz que nela alinhe um grupo de heróis contra um grupo de vilões”, desferiu Levin. E reforçou: “Os erros de gente estúpida ou perversa podem ser pavorosos; mas a lição seria mais pavorosa ainda se concluíssemos que os inteligentes, que tentaram ser justos e reconheceram o perigo nesses métodos, chegavam às mesmas conclusões e reforçavam os mesmos castigos.” Será justa uma crítica tão dura?
Sinto-me especialmente interessado no assunto por várias razões. Por um lado, admito a chatice de qualquer coisa que vale sobretudo pelo seu contexto. E, nesse aspecto, encontro em The Crucible o conteúdo imediato necessário para ela sobreviver mesmo quando ignoramos as agruras do macarthismo -- Miller não ficou assim tão aquém do défice de profundidade artística de que Levin o acusou, parece-me.
O texto de Miller consegue ir além da crítica específica de Levin. Sim, falta aos pastores em cena outra gravidade, para acudir a uma das fraquezas mencionadas. Mas também é neste ponto que, por outro lado, abro a minha porta de entrada: visto que sou também pastor e neto do puritanismo aqui tão vilipendiado, quero testemunhar o que é redentor em The Crucible, mesmo quando Miller escorrega para uma vilanização apressada.
Pertenço àquela fina fatia de portugueses para quem a palavra “puritano” não é palavrão. Pelo contrário, o puritanismo é para mim sinal de uma tradição religiosa de potência intelectual e poética, quase nunca reconhecida em países de monopólio católico como o nosso. Na sua English Literature in the Sixteenth Century, C.S. Lewis explicava que “os puritanos eram assim chamados porque reivindicavam ser puristas no que diz respeito ao governo da igreja: não porque enfatizavam mais do que outros cristãos a ‘pureza’ no sentido de castidade”. Ao contrário do retrato costumeiro, os puritanos não viviam em exercício constante de autoflagelação. E Lewis continua, mostrando que ser um puritano “não tinha a ver com o que encontramos na ficção do século XIX. A Mrs. Clennam de Dickens, tentando expiar o pecado da sua juventude através de uma longa vida sombria, estava a fazer precisamente o que os primeiros protestantes lhe teriam proibido. Eles ter-lhe-iam ensinado que toda essa concepção de expiação era papista”.
O que isto significa na prática é que, à medida que as páginas de The Crucible avançam, reconheço nos maus da fita alguma bondade. O facto de os puritanos temerem a bruxaria era também o reconhecimento de que as mulheres que nela se metiam não estavam ridiculamente iludidas, frustradas e sem poder. Miller, ao não acreditar em bruxas, torna os julgamentos de Salém num exercício involuntário de paternalismo para com as personagens femininas, como se o adultério fosse o maior estrago que elas pudessem fazer. É muito o que se perde quando se deixa de acreditar em bruxas, porque se perde também aquilo em que elas acreditavam.
As bruxas acreditavam profundamente na natureza. Neste ponto, concordavam até com os seus carrascos religiosos -- o mundo à nossa volta é um facto, a maneira como lhe respondemos é outra conversa. E é aqui que o caminho se bifurca.
Aceitar ou afrontar a natureza, eis, em grande parte, a questão. Aceitá-la foi sempre uma proposta difícil mas, diríamos, mais cristã. A natureza, até quando hostil, podia ensinar que havia um sentido além do que nela parece arbitrário -- para o crente, até no sofrimento mais natural pode estar Deus. E Deus seria, para usar a linguagem de Northrop Frye, um Pai do Céu sobre a Mãe Natureza. A aceitação, menos do que um fatalismo, seria um argumento para o consolo em Deus até nas circunstâncias que preferíamos mudar. A natureza não usurpava Deus mas era usada por ele. É esta a tradição do cristianismo, em geral, e dos puritanos de Salém, em particular.
A partir deste entendimento do que é natural nasce um sobressalto com o que natural não parece. E assim começa The Crucible, quando paira a sombra de que a doença da pequena Betty está além da natureza.
Susanna: […] Ele não consegue achar remédio nenhum pra isto, nos livros dele.
Parris: Então ele que procure mais.
Susanna: […] Ele pediu-me para lhe dizer que mais vale o senhor procurar causas contranatura para isto. [considero equívoca a tradução de unnatural para contranatura]
Os puritanos liam e escreviam livros para delimitar o mundo natural e, se o vissem ultrapassado por algum facto, concebiam o sobrenatural. Por absurdo que isto nos pareça agora, era, para todos os efeitos, uma abertura. Paradoxalmente, cabe hoje à ciência fechar as portas ao que não consegue documentar: se não é científico, não existe.
Na atitude oposta a esta tentativa de compreensão e aceitação da natureza, e do que estava além dela, havia a tentação de dominá-la. Para dominar a natureza podemos tentar aplacá-la ou até disciplinarmo-nos ao ponto de lhe sermos indiferentes (chamar-lhe Mãe ou ignorá-la são aqui faces da mesma moeda). Ainda que estas questões nos pareçam metafísicas, continuam a ser de todos os tempos e muito de agora. A vantagem do paganismo mais exuberante do passado é que, não disfarçando os seus objectivos concretos, agia em conformidade com eles. De certo modo, hoje somos todos razoavelmente ímpios nos nossos desejos, mas com pudor cristão na escolha dos métodos -- os nossos bruxedos foram sanitizados.
Betty: Tu bebeste sangue, Abby! […] Bebeste um feitiço para matar a mulher do John Proctor!
Abigail: (Atinge Betty com uma forte estalada.) Cala a boca! Cala-me essa boca!
As bruxas não existem? Nisso, Miller falhou. Somos todos bruxos e bruxas quando em nós existe um desejo maior do que a aceitação dos nossos limites naturais. Também é por isso que perdura o nosso fascínio por histórias destas. Quero, aqui, recordar John Updike e o seu díptico das bruxas de Eastwick. Quando o lemos, vemos o mundo descrito com a precisão de quem escolheu dominá-lo. A sabedoria daquelas bruxas modernas é mais ambiciosa do que a dos sábios contemporâneos que deixaram de acreditar nelas. Os sábios contemporâneos vestem-se de humildade epistemológica -- eles só sabem que nada sabem. Já a bruxa não está para truques e despe-se, como na dança nocturna da floresta: ela não escolhe saber, ela sabe porque escolheu dominar. Apetece dizer que os erros de uma caça às bruxas são óbvios e lamentáveis, mas não prevenimos todos os outros só porque as negamos.
Miller descrevia assim as fronteiras de Salém: “O limite do território selvagem ficava bem próximo. O continente americano estendia-se infinitamente para oeste, e era cheio de mistério para eles. Espreitava-os, escuro e ameaçador, noite e dia, porque dali vinham saqueadores das tribos índias, de tempos a tempos.” O Diabo estava além do que era conhecido, no território dos índios, para lá da segurança branca. Mas, para o mapa puritano, este não era o único lugar do maligno. O Diabo vivia além da vila providencialmente cristã, é certo, mas vivia também dentro dos cristãos -- as trevas não eram apenas o mundo desconhecido mas também o eu desconhecido. A actual omnipresença digital de mapas não favorece que localizemos o mal preferencialmente em nós. Pelo contrário, é difícil resistir a acusar os outros. O pandemónio nasce da nossa preferência geográfica em localizar o que não é bom no meu próximo.
A impressionante vertigem denunciadora em Salém matou quase vinte pessoas e implicou mais de duzentas. “Antigas contas foram acertadas” sob o pretexto de se atingirem as causas mais sublimes, na separação evidente entre bons e maus. Numa entrevista em 1995, Arthur Miller confessou que encontrava paralelos entre o ambiente de The Crucible e o universo de acusações sexuais no final do século XX. Referia-se então às crianças que, através da recuperação de memórias supostamente reprimidas, denunciavam adultos que teriam abusado delas -- as bruxas podem ser caçadas por agendas conservadoras e progressistas.
Se glorificarmos a denúncia, qualquer queixinhas se torna um virtuoso. Um dos aspectos mais perturbadores em The Crucible é a espiral chiba com que nos livramos do Diabo, passando-o ao outro e não a nós mesmos. Ainda nessa entrevista de 1995, e recordando os fervores da campanha anticomunista americana da década de 1950, Miller dizia que “não podemos duvidar da conspiração [comunista], senão somos acusados de contribuir para ela -- não era possível opormo-nos a esta loucura sem sermos incriminados. Era uma lógica circular.” Questionar a interpretação dos factos era como negá-los. E os “negacionistas” eram o perigo.
Com a questão da acusação vem inevitavelmente a questão da alucinação. Acusar é fácil e alucinar não é impossível -- de mãos dadas, parecem dois verbos feitos um para o outro.
Que Betty e outras meninas agoniavam, não há dúvidas (algumas das teorias mais recentes apontam a possibilidade de que a ingestão dos cereais que cultivavam proporcionaria uma doença fúngica). E concordaríamos que um sofrimento físico real não foi uma alucinação -- foi tão documentado pelos registos históricos como dramatizado por Miller. A questão é que o ímpeto acusador tornou uma alucinação, que poderia ter causas mais ou menos naturais, noutra de ordem sobrenatural -- com ou sem bruxaria, as pontas soltas acabariam embrulhadas. E daqui nasce uma curiosa ironia: aderir ao que os outros vêem, contra ou perante a pouca evidência dos factos, é socialmente muito mais fácil do que julgamos.
Aderir ao que os outros vêem, contra ou perante a pouca evidência dos factos, acontece facilmente num ambiente de vitimização. A acusação infundada, feita em Salém por gente miúda contra gente graúda, foi aceite porque o tamanho infantil serve na perfeição a figura da vítima. O Diabo, reveladoramente, está nos pequenos detalhes e pode estar também nos detalhes dos pequenos (na mata do índio, dentro do cristão, na boquinha amorosa de uma criança, etc.). Quando aceitamos uma visão do mundo com fronteiras híper nítidas entre vítimas e abusadores, metade do caminho fica feito para que seja a alucinação a ditar a realidade. Não é só porque alguém é acusado por quem veste o tamanho da vítima que o crime fica provado.
O julgamento de Salém registou, com a linguagem do tribunal, um documento do fantástico feito facto. Nada era representação, tudo era evidência; o fingimento era impossível, as provas eram inescapáveis; duvidar era o Diabo, a teoria era ciência. Nada disto teria sido possível sem medo. Mais nomes de culpados eram dados para suster o pânico de o nosso aparecer na lista. Miller, quando apertado pelo macarthismo, recusou-se a dá-los. Caçar bruxas, antes de termos a certeza do mal que sabemos que os outros fazem, é o mal que não queremos que seja visto em nós -- por começar como um gesto defensivo, facilmente se torna tão competentemente acusatório.
Nomes e nomes foram dados, de muitas bocas assustadas para os ouvidos dos inquisidores, dos processos do tribunal para a lista dos condenados. As centenas destes nomes, entre mortos e acusados, não mais permitiram a Salém ser apenas Salém. Ela é agora a eterna metáfora do perigo político. Com pouco equilíbrio, Miller centra-o na teocracia, como se um ateu, por não acreditar em Deus, vivesse impedido de tentar sê-lo. Mas, quero acreditar, não é o nome de Salém que resiste.
A figura heróica de John Proctor, apesar de cair às mãos dos pruridos puritanos, vinga-lhes um valor essencial: o da palavra. Proctor condescende em confessar o mal que não fez, mas não permite que a sua assinatura sobreviva. Dar o nome é aqui um passo irreversível -- quando a alucinação passou a determinar a realidade pela via da acusação, o único reduto sagrado é quem somos por escrito.
(Mal Proctor acaba de assinar, Danforth estende a mão ao papel. Mas Proctor agarra o papel de um golpe, e agora um terror selvagem cresce nele, e uma raiva sem limites.)
Danforth: Se faz favor, meu senhor.
Proctor: Não. […] Eu assinei o papel. Todos viram. Está feito! Isto não faz falta nenhuma.
Parris: Proctor, a vila precisa de uma prova de --
Proctor: Maldita seja a vila! Eu confesso a Deus, e Deus viu o meu nome aqui posto! E isso chega! […] Eu confessei-me! Não há penitência que não seja pública? Deus não precisa de ver o meu nome espetado na igreja! Deus vê o meu nome. Deus vê como são pretos os meus pecados! E isso chega!
Uma das desvantagens de traduzir The Crucible para As Bruxas de Salém é que o destaque vai para as bruxas em que Arthur Miller não acreditava. Mas o título original significa “uma situação de teste severo, em que elementos diferentes interagem levando à criação de algo novo” (mas também pode ser um caldeirão borbulhante). Algo novo, segundo o mito original da crença dos puritanos e de outros cristãos alegadamente mais saudáveis do que eles, é o que vem da presença da palavra. Tudo é criado pelo verbo no Génesis -- a palavra é o gatilho da novidade. Creio sinceramente que Miller, mais do que nos levar a tirar comunistas da prisão ou a meter nela novos conspiradores, quer-nos no “teste severo” que este texto é. Se o virmos no palco, óptimo. Se o virmos fora dele, numa espiral chiba que nos ameace, o nosso nome continua a pertencer-nos. Deus vê e isso chega, dentro e fora da moldura.