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Tempo é Dinheiro

Postado em 02.03.2023 00:00

Capa

Autor(es): Lionel Shriver

Editora: Intrínseca

Páginas: 464

Idioma: português

ISBN-13: 9788580571899

ISBN-10: 8580571898

Esse livro conta a história de um casal que tem a rotina drasticamente afetada por uma doença grave.

Shepherd sempre sonhou em fazer um "pé de meia" e fugir dos EUA para um país de Terceiro Mundo em que pudesse viver com conforto com poucos dólares por dia.

Sua esposa, Glynis, teoricamente sempre esteve de acordo com esse plano. Fazia até várias viagens de pesquisa com o marido, mas não acreditava de fato que um dia ele fosse abandonar tudo para ir viver sua "Outra Vida".

Um dia, Shepherd chega em casa e dá um ultimato à Glynis: ele iria embora em pouco tempo. Já tinha uma poupança grande o suficiente para viabilizar a "Outra Vida".

Glynis comunica que não pode ir embora, pois tinha acabado de ser diagnosticada com um câncer raro e agressivo. O seguro de saúde de Shep seria necessário.

A partir daí, esse casamento é posto à prova. É um romance extremamente honesto. Os personagens são muito humanos. A autora faz um trabalho tremendo de construção psicológica deles. Frequentemente nos é mostrado o que os personagens estão pensando ou sentindo e nem sempre são coisas "bonitinhas". Porém, são sempre coisas com as quais podemos nos identificar de alguma forma.

Que o livro aborda questões complexas como "qual o valor da vida humana" ou que serve como crítica ao precaríssimo sistema de saúde estadunidense já é bastante comentado em resenhas no [Skoob](https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/237338/edicao:265376) e no [Goodreads](https://www.goodreads.com/book/show/6839917-so-much-for-that).

O que ficou evidente para mim e que não li tanta gente comentando é que é uma história sobre ressentimentos. Mesmo entre pessoas que se amam. A maior parte das romancistas pode até ir até as brigas, até as desavenças, mas nunca li nada que fosse tão fundo nos ressentimentos.

Shep se ressente por sempre pagar a conta, por sempre precisar ser o "adulto responsável"...

Todo membro de uma família tem seu papel, e o dele era pagar as contas. Visto que os demais envolvidos aceitavam essa situação como um fato reconhecido, Shep também a aceitava como um fato reconhecido.

Glynis se ressente por não ter sido a artista que poderia ter sido...

Shep não exigia essa gratidão, mas poderia dispensar o rancor, um sentimento que se caracteriza por ser desagradável para quem o nutre e quem o recebe. Glynis se ressentia de sua dependência, que considerava humilhante. Ressentia-se de não ser uma artista famosa no trabalho com metais, e se ressentia de que sua condição de nulidade profissional se afigurasse a todos, inclusive a ela própria, como culpa sua. Ressentia-se dos dois filhos, por terem desviado sua energia quando eram pequenos; quando deixaram de ser pequenos, ressentiu-se deles por não desviarem sua energia. Ressentia-se de que o marido e os dois filhos, que já agora tinham a desconsideração de não lhe exigir nada, tivessem roubado suas relíquias mais preciosas: suas desculpas. E, como o ressentimento produz o equivalente psíquico da azia, ela se ressentia do próprio ressentimento. Nunca ter tido grandes motivos para se queixar era mais uma razão para se sentir ofendida.

Carol, amiga do casal, se ressente por ocupar todo o seu tempo com os cuidados da família. Ela se dedica tanto ao bem estar da filha que possui uma doença degenerativa que perdeu um pouco de sua própria identidade.

Por mais que vivenciasse esses deveres domésticos como imposições, ela era profundamente dependente dessa diligência febril desde a manhã até a noite, pois havia muito que perdera a capacidade vital de não fazer nada. A laboriosidade de Carol assemelhava-se ao chá-chá-chá ininterrupto da mãe de Glynis, exceto pelo fato de que ao menos Hetty fazia uma busca malfadada de uma autorrealização fugidia; a atividade agitada de Carol tinha que estar sempre a serviço de outra pessoa. Esse altruísmo compulsivo lembrava a abnegação, porém era mais sinistro que isso. Ela já não fazia a mais vaga ideia do que poderia desejar por si mesma, portanto, o que é que estava sacrificando? Jackson se entristecia ao notar que, ao longo dos anos, sua mulher tinha substituído insidiosamente o prazer pela virtude.

E Jackson, marido de Carol... Bem, ele é um daqueles "pilhados com tudo", um tipo que me pareceu um pouco *ancap*, mas que toleramos por saber que adora a filha e por fazer uma ou outra crítica sobre "o sistema" que até faz sentido.

Ele não se sente à altura da esposa e se ressente até da beleza dela. Gosta de ser visto com ela, mas quando se compara com ela na intimidade, não gosta da conclusão em que chega.

Jackson sempre se orgulhara de ser visto na companhia da esposa na presença de outros homens, acompanhados por suas mulheres desbotadas e pesadonas, mas dentro de casa, a única pessoa em relação a quem Carol era mais bonita era ele. Jackson não era horroroso nem nada, mas tinha medo de eles serem um daqueles casais de quem os outros dizem, em conversas particulares: *A Carol é um arraso, mas o que foi que viu nele? Por que uma mulher daquelas havia de escolher um cara proletário, baixo e pesadão, cheio de pelos nos ombros?* Ele lera em algum lugar que uma das coisas que respondiam por um casamento feliz era os dois parceiros terem mais ou menos o mesmo nível de atrativos físicos, o que o deixara nervoso. A maioria dos homens o acharia maluco, mas ele gostaria que Carol fosse um pouquinho menos atraente.

Longe de afastar esses personagens das pessoas que eles amam, os ressentimentos deles só fazem seu afeto parecer mais crível.

Achei um livraço e em certo ponto virou um verdadeiro *page-turner*. Era difícil largar a história e de "só mais um trecho" em "só mais um trecho", entrei pela madrugada lendo em mais de uma situação.