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(aviso de conteúdo: capacitismo, autodestrutividade)
Esse texto é sobre a minha experiência como uma pessoa neurodivergente que também lida com depressão e disforia de gênero. Tenha em mente que outras pessoas terão uma experiência diferente.
Hoje, em situações novas, conhecendo alguém pela primeira vez, minha principal dificuldade ao me comunicar é que raramente estou focada naquela interação e como ela está sendo percebida dentro dos padrões neurotípicos.
Por mais que uma troca pareça ser sobre um determinado assunto, em geral ela é muito mais sobre as pessoas que estão se comunicando do que sobre o assunto que está sendo falado.
Para que isso não acontecesse seria necessário que diversas coisas em geral impraticáveis fossem possíveis:
O nome dessa tentativa de se adequar aos padrões neurotípicos é "mascaramento". É a tentativa de esconder a neurodivergência para não lidar com as inúmeras perguntas e demonstrações de estranhamento que pessoas neurotípicas dão se você não veste essa máscara. Elas são aversivas a um rosto relaxado, imóvel, precisam sempre que o rosto esteja expressando algo, ou que a fala esteja sendo rapidamente articulada. E se você consegue se esforçar para articular a sua fala, então decidirão que na realidade você não é autista!
Quando era mais jovem eu agia de uma forma bastante rude e fria diante dessas situações, e dizia duramente o que pensava, sem me importar se aquilo incomodaria a outra pessoa.
Pensando nisso, talvez fosse mais saudável para mim, mas era uma estratégia pouco interessante que embora funcionasse para me proteger, consistia em estar sempre agredindo a sensibilidade alheia. Isso não é muito interessante para trabalhar e estudar em uma típica vida adulta.
Por ter muitas experiências repetidas de estranhamento em situações sociais, meus pensamentos já ficaram condicionados a avaliar essas situações de maneira ansiosa e negativa.
Abandonar a expectativa por aceitação é uma forma de cuidar de mim e dessas relações.
Não preciso ter uma comunicação perfeita. Porque a sociedade está toda organizada segundo critérios neurotípicos, é de se esperar que esses critérios causem um ruído constante.
Não olhar para os olhos de alguém pode ser interpretado pelo padrão neurotípico como um sinal de desrespeito, displicência, falsidade, vergonha ou culpa.
Já olhar de maneira forçada e mecânica será visto como... forçado e mecânico.
Pode ser até que a outra pessoa peça que você explique o motivo de não estar olhando para ela, solicite que você a olhe nos olhos, ou pergunte o porquê de estar "fazendo essa cara".
Ao demorar para responder, serei interrompida. Se falar de forma lenta, baixa, ou sem entonação e energia, também serei interrompida ou não obterei resposta.
É comum que ao me dirigir a uma pessoa a resposta venha de uma outra, em geral a mais comunicativa do grupo ou a mais próxima a mim.
Esses episódios vão acumulando julgamentos autodirigidos que mais tarde alimentarão um sentimento de auto-ódio que é muito perigoso.
Não sei como você se sente lendo essas palavras, mas para mim ler um texto enorme sobre essas situações pode só me deixar mais ansiosa.
Informação nem sempre é algo que nos ajuda.
Ela pode revirar as coisas sem muito cuidado, e dependendo de como retemos ela, talvez certas coisas nos cheguem e afetem mais do que outras. Pode ser que precisemos processar aquilo em um ritmo que não acontece se o texto for pensado como um bloco fechado, para ser digerido de uma vez.
Ao obter uma certa informação sobre nosso funcionamento, não necessariamente iremos colocar esse dado em um lugar saudável na hora de aplicá-lo às situações concretas do nosso cotidiano.
Para começar, esse dado pode ser totalmente falso, ou não se aplicar a nós. Ainda que seja resultado de uma pesquisa séria, precisamos avaliar com nossa própria percepção se aquilo faz sentido.
Receber informação constante ou excessiva sobre categorias que dividem e compartimentam minha identidade é algo que pode me deixar hipervigilante, avaliando tudo segundo aquele critério e esquecendo de tomar cuidados básicos. Esse é o efeito do contato com profissionais de "saúde mental" que têm visões reducionistas sobre o autismo.
Já ouviu falar que programas de televisão violentos são armadilhas para nos fazerem consumir e nos tornar dependentes de religiões e políticos punitivistas? É um efeito parecido.
Dessa forma, quem controla as mídias pode deturpar a imagem de nossa identidade, vinculando ela a um vetor de medo e auto-ódio.
Tomar consciência disso é resistir à instrumentalização de nossas histórias como objetos discursivos, meros assuntos para serem debatidos por quem detém a "noção", a "lucidez", por quem articula uma visão "real". Para todo o restante, para todo corpo patologizado, fica o local da desordem.
Precisamos ter cuidado não só conosco, mas com toda pessoa ao nosso redor. Isso não é sobre sacrifício. A autoestima e o autocuidado vendidos pelo neoliberalismo e sancionados pelo Estado são sobre nos abandonar no nosso próprio isolamento, como cuidados paliativos do consumo.
Não basta nos cuidarmos isoladamente, nos fecharmos em estratégias de dissociação, nos separando e afastando daquilo que nos causa aflição. Mas também não precisamos nos sujeitar à violência imposta pelo capacitismo e suas hipocrisias repressivas de cura, normalidadade e integração.
Há um espaço intermediário, caótico porém fonte de grande alívio, onde o corpo pode ser louco e ainda assim habitar o mundo.
Na amizade, em vínculos de afinidade e não de dependência ou impopsição moralista, para além dos fetichismos sociais por popularidade, por grandes coletividades harmoniosas, podemos resistir e ampliar espaços onde é possível apenas respirar e ter nosso espaço pessoal e integridade física respeitadas.
Não importa se isso causa constrangimento às pessoas neurotípicas — na verdade elas deveriam aprender a fazer o mesmo.
Se acalmar e buscar conhecer, criar e executar estratégias para garantir essa possibilidade, mesmo que precise desafiar alguém que sente a necessidade de controlar os seus meios de autorregulação, é resistência.
É criar a possibilidade de resistir. É criar a possibilidade de, ao invés de se retrair na sensação de desgaste e trauma, já estar preparede nos conhecimentos da regeneração e do tratamento em um sentido ancestral, muito antes de médico.
Quando não encontramos essa possibilidade, a tensão poderá resultar em comportamentos como o isolamento, a baixa autoestima e a autoagressão.
É algo muito grave que achem aceitável que você esteja chegando a esse ponto, mas não te permitam respirar em silêncio ou recorrer a estereotipias para se acalmar.
O capitalismo funciona através dessa visão onde os corpos são descartáveis quando não se ajustam a uma ordem cujo objetivo é ter um conjunto de pessoas cuja harmonia não busca seu benefício próprio, mas o resultado enquanto produção, enquanto valor econômico.
Quando passo por muitas situações assim e tento produzir para além do meu limite, me deprimo muito e me torno descuidada até da minha própria alimentação e do ambiente onde estou, quanto menos na participação em atividades coletivas.
Ninguém consegue manter a calma o tempo todo.
Há pessoas que até dizem se "irritar" com gente muito calma.
Mas a calma está sempre presente. Quando fico horas no computador meu corpo está quase imóvel. Quando escrevo meus pensamentos e sentimentos meu corpo está conseguindo se exprimir e se concentrar em um espaço onde sente-se tranquilo e seguro.
Este lugar de calma não é uma armadilha. Não pode ser um local onde reprimimos ansiedades e medos de que a qualquer momento ele será desfeito. Não pode ser uma mercadoria à qual somente uma minoria tem acesso.
Sem respirar e ter alguma distância podemos ficar sempre nesse lugar de autojulgamento, ódio e patologização, sentindo frustração por não produzirmos e pensando que somos o problema. Se nos identificamos com o problema, iremos querer nos aniquilar. Mas nós não "somos" o problema. O problema está em um contexto intolerante à neurodiversidade.
Também quero me sentir participante. Também quero poder ser reconhecida. Não desejo estar o tempo todo em um local isolado e distante. Mas ter vontade de ter controle sobre seu espaço de interação é rapidamente julgado como uma atitude mesquinha, egoísta, privilegiada.
Pessoalmente, gosto muito de ficar longas horas em um espaço onde posso me concentrar a sós. Mas se nunca saio desse espaço, ele também pode ser um local de angústia.
Também quero me sentir querida e sentir que faço as outras pessoas se sentirem queridas e valorizadas. É um sentimento péssimo o de que fazemos mal ou que sobrecarregamos as outras pessoas com nossas demandas.
Se temos essas vontades compartilhadas, temos motivos e meios para valorizar e realizar esse cuidado e criar espaços onde nossos corpos poderão ficar sem se sentirem sob pressão, medo, ou ansiedade.