💾 Archived View for tilde.pink › ~imbrica › pt › txt › moral.gmi captured on 2023-01-29 at 05:21:02. Gemini links have been rewritten to link to archived content

View Raw

More Information

⬅️ Previous capture (2021-12-03)

🚧 View Differences

-=-=-=-=-=-=-

O fruto moral

Ao fazer algo, em especial ao fazer algo por outra pessoa, ela poderá oferecer alguma retribuição.

Prefiro dinheiro. Evito aceitar o fruto moral.

O fruto moral ilude nossa auto-estima, alimenta uma falsa sensação de poder e controle, em resumo, nos confunde na nossa relação com as demais pessoas.

Podemos nos tornar dependentes de fazer tudo para elas, negligenciando nossa própria necessidade, definindo nossa importância pelo quão útil somos.

Elas vão voltar o tempo todo com novas demandas, segurando o fruto moral — um fruto que dentro esconde a semente do castigo — nas suas varas de pescar.

As igrejas e tribunais são grandes pomares onde esses frutos são cultivados, estocados e então seletivamente distribuídos.

Esse fruto não serve pra ser compartilhado — só para ser exibido.

A ajuda dada ou recebida nessas transações tenta nos recalcar, nos capturar para dentro do esquema de dependência.

Mesmo se recusar-se a participar dessa compaixão cristã, se estiver de todos os lados vivendo com quem acredita nela, dificilmente não te afetará a enorme sombra de recalque que projeta.

Recalque aqui quer dizer a definição dos valores pela opinião externa, não por uma junção da sua própria opinião com a externa.

Tudo que fizer e deixar de fazer será medido por essa régua.

Pessoal, intransferível

Quando chega em casa depois de um longo dia de trabalho, o marido tradicional vem carregando um enorme fruto moral.

Se ele for casado com uma mulher e ela trabalhar em casa, dificilmente ela terá recebido algum fruto moral por seu trabalho, mesmo estando o dia todo trabalhando também.

Se tiverem um entendimento cristão e tradicional das coisas, ele não irá dar a ela nenhum pedaço do fruto moral que chega carregando.

Está conseguindo visualizar o que é esse fruto?

Pessoas com alguma deficiência, pessoas de idade, pessoas com uma comunicação divergente, há várias especificidades que, apesar de não mudarem o fato de que todo mundo precisa cuidar da própria vida, nem todo mundo acaba sentindo que seu esforço é suficiente e seu descanso merecido.

No arsenal cristão, sua única forma de gerar esses frutos é através do sofrimento. Demonstrando ou fechando-se no sofrimento, receberão frutos morais pela piedade alheia ou divina.

Assim carregamos nas costas o peso do olhar desse deus sádico.

No mundo doentio em que vivemos, o padrão contra o qual nos comparam é o de alguém jovem, sem limitações, que a partir desse lugar de poder "supera todas as dificuldades" e, sem reclamar, colhe seus frutos.

Pessoas não-religiosas também podem vir a acreditar em uma versão laica desse mito capitalista.

Mesmo se não colher dinheiro, com o fruto moral poderá exigir sua parte ou simplesmente tomá-la de alguém.

Se tiver um grande fruto moral para exibir, não irá sentir remorso, confusão, ou culpa. Se alguém vier lhe cobrar, basta exibir e começar a devorar seu fruto moral ali mesmo.

Caso você receba frutos morais é melhor tirar as sementes e moer para fazer geleia. Com a polpa você pode fazer conservas no vinagre. Pegue os potes e venda pela Internet o mais caro que conseguir.

O fruto imoral

Um outro fruto que você pode cultivar ao invés deste é o fruto da anarquia.

Este fruto não tem sementes de castigo do lado de dentro. Tem as sementes da amizade.

Amizade é quando nos ajudamos de forma mútua, respeitando os limites da outra pessoa e sem impor a ela um conjunto de crenças que pode ser estranho.

Amizade é quando não cobramos da outra pessoa que atenda ao nosso próprio modelo de amizade.

Amizade é quando ajudamos alguém sem fazer a pessoa se sentir inferior por precisar de ajuda. E se não podemos ajudar, não ajudamos, sem nos sentirmos também inferiores.

Na amizade, não fazemos algo para depois falar sobre o quanto fazemos e como as outras pessoas são preguiçosas e não fazem nada.

Nossa ajuda não é uma demonstração de que somos seres mais corretos e que somos capazes de ajudar em consequência de sermos melhores e termos atitudes mais certas. Nossa ajuda é desinteressada, feita apenas por reconhecimento da nossa relação.

E se não há relação, nem vontade de ajudar-se, então não há um problema.

A amizade não tenta consertar, ajustar, mudar a outra pessoa. Ela também não se omite, por pena, por dó. Ao querer fortalecer, ela mostra pelo exemplo o que é a força, sem cobrar para si um fruto de moralidade.

Amizade é quando não passamos julgamentos à outra pessoa sobre o quanto ela deve dormir ou trabalhar. Não basta reconhecer que porque as plantas dessa amizade ainda não tomaram o mundo, a maioria das pessoas se vê obrigada a trabalhar.

Isso é um fato que requer muita amizade, mas ele só continuará a ser uma máquina de moralidade se negamos o trabalho não-pago, que nem é considerado trabalho: o trabalho doméstico, o trabalho emocional, o trabalho do cuidado.

Se você vê o trabalho formal, do qual muitas pessoas são excluídas, ou que muitas pessoas têm que realizar ao mesmo tempo que realizam o trabalho não pago, como sendo superior, mais cansativo, mais digno de retribuição, então você já se apegou aos seus frutos morais.

A consequência é que muitas pessoas que gostariam muito de ter alguma estabilidade financeira e mobilidade podem estar realizando o trabalho não-pago do cuidado e recebendo apenas castigo em troca.

Se puder presentear alguém que faz esse tipo de trabalho com o fruto da amizade, possivelmente estará fazendo algo muito importante para essa pessoa. Mas se oferecer a ela um fruto moral, em breve no seu jardim vai nascer uma planta de castigo.

A planta sugará todo nutriente que houver na terra, e o jardim todo vai sofrer.

Ao contrário do fruto moral, o fruto da anarquia cresce como uma trepadeira, sobe pelas paredes.

Se subir sobre o caule do castigo, irá estrangulá-lo e degluti-lo.

Não é uma escolha. O fruto da moralidade é imposto sobre nós, e o da amizade tem que ser traficado porque a polícia não permite o seu cultivo.

Por isso, se tiver uma amizade, cuide bem dela. Se você não consegue ou não gosta de comunicar-se de uma forma normativa, comunique isso. Comunique sua comunicação divergente, mas comunique-se.

Sem esperança, sem medo, sem pensar ser insuficiente ou incapaz, só dessa forma posso cuidar do meu jardim e conhecer a minha amizade neurodivergente.