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Esse texto foi escrito como uma arma de autodefesa contra o capacitismo.
Ele fala sobre gatilhos, sobre machismo, sobre violência. Pode portanto conter vários gatilhos.
No final, ele faz críticas a posturas defensivas de recusa a cuidar dos gatilhos alheios.
Todo mundo pode ter dificuldades com isso, já que é um processo e não uma postura perfeita que simplesmente adquirimos.
Portanto, ao ler, ao invés de identificar-se pessoalmente, é melhor agir e ajudar a criar e transformar espaços onde esse cuidado possa ser vivido na prática.
Lidar com a defensividade de forma agressiva também é necessário se estamos diante de uma agressão iminente, mas se isso for causar um desgaste que não vale a pena, é melhor se preservar.
Quando acordo, prevalece um resíduo do dia anterior, da noite e do sono que tive.
Também está presente um resíduo de tudo que passei.
Isso é muita coisa
E é muita coisa que nosso primeiro impulso seja sempre o de negar e reprimir nossa memória.
Nessas muitas coisas há algumas que ficam gravadas como gatilhos.
Nossa cultura machista tenta violentar todas as pessoas até que tornem-se imunes, invulneráveis a gatilhos.
E falha nessa tentativa. Não porque não crie pessoas insensíveis — nisso tem muito sucesso. Mas no fim essas pessoas são ainda mais suscetíveis e explosivas com seus gatilhos. E elas também são propensas a disparar os gatilhos alheios.
Quanto mais invulnerável tenta deixar alguém, mais vulnerável é que fica. É algo passado de geração em geração dentro das famílias cristãs tradicionais, mas que nunca funciona.
A única coisa à qual elas realmente ficam insensibilizadas é ao machismo em si.
Pessoas com deficiência serão ensinadas que suas sensibilidades são "excessivas". A patologia torna uma sensibilidade restrita à forma como ela pode ser entendida segundo aquela patologia, e não mais como uma sensibilidade individual, digna de ser olhada segundo cada pessoa.
Pessoas trans e travestis serão ensinadas que suas sensibilidades são artificiais, são criadas por elas próprias, um produto da imaginação que cabe ser avaliado e decidido individualmente por cada pessoa cis que encontrarem no caminho.
Na interseção entre esse dois eixos, o transcapacitismo é sempre articulado através de uma lógica moralista que busca violentar repetidamente o corpo traumatizado alegando que é através da violência que esse trauma será removido.
Gatilhos são resultados de traumas experienciados por pessoas ou grupos. Esse traumas nos fazem sentir que precisamos nos proteger o tempo todo do mundo ao redor.
Qual é a resposta padrão que aprendemos? Que esse desejo de se proteger é o próprio erro. Que devemos abandoná-lo ou tê-lo atropelado de novo para "aprendermos" finalmente, através dessa violência, como a vida "é".
É fácil perceber o engano ao olharmos para quem propõe com mais firmeza essa moralidade: figuras autoritárias, oriundas da polícia e de núcleos políticos que usam a violência e esse moralismo patriarcal como a base de seu marketing político.
Não vivenciaram os traumas. Não podem saber nada sobre trauma. Sabem apenas como causá-lo e como tornar as pessoas indiferentes a ele. Sabem apenas como propagá-lo, ensiná-lo. Veneram e fetichizam o trauma.
Ao que apelam não é uma sabedoria madura que falta ao ser traumatizado — como conseguem fazer parecer porque aliam-se de religiosos igualmente interessados na influência sobre o Estado — apelam a esse moralismo patriarcal que prega a traumatização repetida como uma arma de guerra.
Essas experiências armaram gatilhos. E não é através da força que esses gatilhos são desarmados e cuidados. A força é como esses gatilhos são intensificados, e é nisso que se interessam esses agentes de controle e terror que querem nos ver sem ação.
Em primeiro lugar, é preciso perceber que muitas vezes não se trata de desarmar, de curar esses gatilhos, mas de aceitar e passar pelo processo de luto pelo fato de que alguns deles podem nunca ser totalmente desarmados.
Esse luto não precisa ser um processo doloroso. Pode ser um processo de libertação. Podemos nos libertar da expectativa de esquecer e "superar" algo que queremos muito superar mas que neste querer acabamos nos envergonhando e culpando. Há memórias que não podem ser apagadas, esquecidas. Mas reconhecer, centrar e ter consciência disso é por si só uma cura.
O que vem depois é considerar as estratégias para lidar com eles, para criar contextos onde eles são respeitados e levados em conta ao invés de trivializados, tratados como sem importância.
Isso vem junto das estratégias de atravessar os espaços onde sabemos que enfrentaremos gatilhos, e onde não há expectativa de que as pessoas ajam com sensibilidade a eles, à exceção de algumas que, por princípio ou por também terem especificidades, levam seu cuidado para todo lugar que vão.
Essas são pessoas preciosas que devem ser celebradas por transportarem consigo um campo de cuidado que acolhe a todas as outras, mesmo quando estão atravessando o olho da tempestade.
Por fim, depois desses processos, podemos dizer que ganhamos confiança e que nossos espaços de cuidado tornaram-se um refúgio. Sabemos que, independente do que aconteça, poderemos voltar para aquele lugar e descansar do que passamos.
Esse é um lugar que ainda não alcancei, mas que gostaria muito de construir. Por vezes consigo sustentar essa esfera de cuidado por dias, mas sei que poderia — que preciso — ir mais longe. Vejo isso como uma poderosa motivação, e não como um idealismo sabotador ou perfeccionista.
É importante lembrar que esses espaços têm que ser compartilhados. O cuidado e a segurança já são comodificados como produtos do consumo para "vender saúde".
Pelo preço certo, dá pra pagar por terapias, remédios, viagens, spas, dá pra comprar uma fuga pra bem longe. Mas isso não é um espaço de cuidado. Um espaço de cuidado não nos suga e depois manda embora. Ele recebe o que podemos dar e oferece aquilo que tem.
Ele não é necessariamente feito de paredes e um teto. Pode também ser um espaço público em uma rua ou praça onde um grupo se reúne para praticar esse acolhimento.
O que mais intensifica as dores de ter os gatilhos disparados não é somente um episódio temporário, que alguém pode minimizar tratando como desimportante, dizendo que "isso passa/vai passar".
O que faz essas dores entrarem numa espiral descontrolada é não saber para onde ir, é a ausência de algum lugar seguro para onde voltar, é não ter para onde fugir, nenhum espaço, nenhuma estratégia para se cuidar e acalmar.
Para uma pessoa neurodivergente, essa exclusão leva ainda à sensação de dúvida interna entre não saber se é só paranoia sua ou se a mensagem é mesmo de que o problema é seu se não tem "maturidade", "postura", "noção", categorias do arsenal neurotípico que serão eternos mistérios para você, e que você tem que conseguir decifrar sem ajuda de ninguém até que possa demonstrar tê-las dominado.
No passado, já acreditei na ideia de que "não existem espaços seguros". Mas o que não existem são espaços perfeitos, espaços onde temos controle.
Se você espera por isso, vai ter que tornar-se uma espécie de polícia que fica sempre monitorando as outras pessoas para manter esse padrão.
Não é isso que "espaço seguro" significa para mim. Um espaço seguro é um espaço de cuidado, onde uma conversa está sempre acontecendo, mesmo quando ninguém está falando nada, e onde se alguém violar certos limites, essa conversa será pronunciada.
Se alguma pessoa nesse espaço se recusa a participar da conversa, e acha que ela é mais importante do que as necessidades das demais, se ela não aceita, como as demais, a recusar a perfeição e se deseducar também — princípios básicos do cuidado —, como é possível prosseguir?
Essa é a única distinção que costuma ser necessária. Essa pessoa está disposta a ouvir? Ela está disposta a conversar sobre? Ou ela apenas defende seu direito de falar e agir como quiser, independente das consequências para as demais?
Como costuma justificar esse descaso? É alguém que não se interessa pelo cuidado, o acha desnecessário, ou um empecilho para fazer o que "realmente" importa e prefere se apegar a visões patriarcais sobre os corpos terem sempre que conhecer a verdade através da agressão psicológica ou mesmo física.
Somam-se aqui estereótipos machistas de virilidade instável, ideias que alimentam a vergonha da sensibilidade e da vulnerabilidade e a sensação de que não temos o direito de descansar nunca. Prefere agarrar-se à armadilha do poder capacitista, então como esse espaço pode transformá-la? E se ela não deseja participar disso, como ela pode ser motivada a pensar sobre suas intenções? Quais outros espaços podem acolhê-la?
O silêncio e o medo de dizer algo errado não fazem com que nossos enganos sejam magicamente expressos. É preciso ter a coragem de expor nossas falhas para que elas sejam revistas.
Essa abstenção pode nos prender em ciclos de conivência. Queremos intervir e interromper um padrão de gatilhos, mas alguém insiste em repeti-los. Como proceder?
Por que alguém que recebe uma correção se desestabiliza com tanta facilidade mas parece ter uma forte base para defender suas ideias uma vez questionada?
Por que não aceita a vulnerabilidade alheia mas quer ter a sua protegida incondicionalmente?
Por que começa a argumentar sobre o que foi dito se o que foi dito não pode ser mudado? Por que começa a falar coisas sobre si se o assunto é a pessoa ou grupo ofendido?
Isso pode acontecer porque ela já passou por alguma experiência de rejeição e descarte. Se esse for o caso, devemos ter preparo para conseguir acolhê-la e ter atenção a esse gatilho. Mas e se não for o caso? E se ela age dessa forma porque não aceita ser desafiada?
Como pode se sentir no direito de criticar, mas explosivamente não admite erros, ou precisa implodir todo o espaço e todos os relacionamentos e tachar todas as pessoas presentes por ter sido cobrada?
Não adianta muito defender-se falando das suas intenções ou se prendendo internamente na sensação de que a sua importância ou a sua imagem foram machucadas. Não é sobre isso.
É sobre a sensação, física e emocional, de que um gatilho foi disparado. É sobre reconhecer a importância de não fazer isso. Às vezes tudo que uma pessoa deseja sentir é que a outra compreendeu essa importância. Ela não quer ouvir desculpas, causar culpa, vergonha, autojulgamento, autodepreciação, nada disso.
É possível não disparar gatilhos. Mas às vezes não é possível parar a sensação que foi disparada.
Dizer a alguém que está se sentindo assim que tem uma frescura, fazer um simples barulho de desaprovação com a boca, gesticular, tudo isso só servirá para proteger e manifestar sua desaprovação daquelas emoções, e fará essa pessoa se sentir pior.
Assim, ela se isolará cada vez mais do convívio por não se sentir apta a viver nesse espaço. Mas o que está errado, a pessoa ou o espaço?
Porque se ela pudesse parar de sentir o que a está afligindo, por que não pararia?
A sugestão de que está tentando "chamar atenção", "ser o centro", ou "manipular a situação" é muito violenta e pode acabar sendo internalizada, fazendo com que ela passe a questionar sua própria realidade.
No espaço de cuidado, pessoas com deficiência são o centro. A atenção é toda delas. E elas não precisam manipular nada porque podem se comunicar de forma direta e cristalina.
Se em algum momento tiverem um comportamento problemático, isso será dito a elas de forma também direta, sem julgamentos e ironias subentendidas que mantêm a pessoa em um constante estado de depreciação e baixa auto-estima mas são compartilhadas na sua ausência (isso é considerado "adulto").
Em um estado ansioso, um gatilho pode ser só o que basta para precipitar uma crise.
O que parece mais possível: trabalhar com atitudes específicas, que podem ser identificadas e comunicadas, ou trabalhar com o "jeito da pessoa", com essa caixa fechada, indiscernível, acessível somente à própria pessoa, e da onde pode sair qualquer coisa?
Da forma como vejo, não existe essa essência, esse espírito interno e imutável que alguém simplesmente "é". Ou, mesmo que haja algo do tipo, já que é impossível de acessá-lo, não temos como comunicar muita coisa através dessa ideia.
No espaço de cuidado, nos aceitamos como somos. Tanto nos aceitamos como somos que nos dispomos a desaprender todo o necessário para não nos agredirmos. Não basta aceitar só a mim mesma e sair exigindo isso por aí ao mesmo tempo que não aceito as demais pessoas. Aceitar alguém como é não é algo fácil e simples.
Aceito a mim e aceito por extensão a todas as outras pessoas como são. É a opressão e sua exerção que não aceito. A opressão é aprendida. Ela não é um traço essencial da personalidade onde tentam escondê-la.
Meu comprometimento está em oferecer o cuidado que vai me permitir cuidar também de mim mesma. O cuidado do qual sou capaz é aquele a cujas especificidades tenho acesso direto pela minha própria experiência.
Não tenho a pretensão de poder ajudar todas as pessoas. Em especial não tenho a pretensão de ajudar as pessoas que procuram um lugar universal, livre de nomes e rótulos, livre de categorias. Não consigo enxergar como sequer conceber esse cuidado.
Vou continuar a estudar, deseducar e construir esse espaço, não porque preciso fazer algo por uma causa externa a mim, mas porque sei que eu e outras pessoas precisamos desse cuidado para nos mantermos vivas.